segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Felipão: o homem que fez da seleção uma família

Apostando na simplicidade e na família Scolari, Felipão tem a difícil meta de conquistar pela primeira vez uma Copa em casa 

 

O gaúcho Luiz Felipe Scolari poderia muito bem ter ficado satisfeito ao ter conseguido levar a seleção brasileira de futebol ao título da Copa do Mundo de 2002. Mas resolveu tentar repetir o feito em 2014, que o colocaria numa condição de técnico bicampeão mundial que apenas o italiano Vittorio Pozzo, em 1934 e 1938, conseguiu.

O trabalho para tomar a taça para o Brasil passa antes por entender que o futebol muda muito rápido; a matéria-prima que dá à Canarinho o status de grife também. A decisão, agora, não é do outro lado do mundo. É em casa. Diante de uma torcida que pode levar o time a um tom de patriotismo surpreendente. Mas que pode, também, azedar diante de decepções. É preciso administrar os astros, os protocolos, as pressões, as políticas. As expectativas.

Para ele, o melhor a fazer é isolar todo o resto. Por isso Felipão prefere se isentar de assumir posicionamentos que não sejam relacionados estritamente à seleção brasileira. A missão é dele, as escolhas são dele.

E a fórmula da ‘Família Scolari’, que virou receita de sucesso na década passada, ainda está lá. Agora até com mais cuidado, pois os “filhos” são mais jovens. O sistema é “o mais simples possível”, tornando mais direto o caminho para o objetivo do jogo. Aí as responsabilidades no time se equilibram. E o técnico do Brasil encontra razões para afirmar que a taça será nossa.
 
O POVO - Você já disse que o Brasil vai ganhar a Copa de 2014. A pergunta é: como?
Luiz Felipe Scolari - Vejo um ambiente de trabalho muito bom. Tenho observado os jogos de todas as outras seleções e respeito todos. Mas acho que com a superação que nós podemos acrescentar ao nosso nível técnico, nós temos amplas condições de sermos campeões.

OP - Sobre o caminho, você disse que prefere...
Felipão - Eu prefiro passar a primeira fase. Depois, numa projeção, eu analiso e dou minha opinião. Mas aquela é uma opinião apenas jornalística, é uma opinião que eu expresso através de uma solicitação, mas nós vamos trabalhar com o objetivo primeiro que é vencermos o grupo na primeira fase. Não tô preocupado com a sequência, tô preocupando com o início.
 
OP - E a primeira fase é, em tese, relativamente fácil. Mas a seleção não pode se acomodar, até sob risco de pressão desmedida da torcida...
Felipão - Pode haver pressão de torcida, de imprensa, mas nós, através do nosso trabalho, vamos tirar essa situação de pressão e vamos colocar a realidade. A realidade hoje é que o futebol tá muito igualado. O México classificou com dois gols dos EUA nos últimos minutos, tirando o Panamá! Na Europa, classificaram Portugal e França através da repescagem. O Uruguai classificou na América do Sul jogando (repescagem) contra a Jordânia, que ninguém esperava. Não adianta pensar que apenas com a tradição ganha. E aí, esse é o nosso papel principal como técnico da seleção, além de bons treinamentos, saber administrar essa parte psicológica.

OP - Seleções estrangeiras demonstram preocupação com o horário dos jogos, a variação climática na época do ano, e ainda os grandes deslocamentos. Como fica isso pra seleção brasileira?
Felipão - A Copa do Mundo é um campeonato disputado e visto por todos os continentes. Então, as adaptações devem ser feitas e são feitas pela Fifa. A Fifa estuda e organiza uma situação. E uma ou outra seleção deve ter um pouco mais de dificuldades. Mas isso já foi feito quando o campeonato foi na Coreia (do Sul) e no Japão, nos EUA... Nós podemos ajudar com algumas sugestões; a Fifa analisa e vai por em prática ou não. Então, pra nós do Brasil não tem muita diferença em relação aos estrangeiros porque, neste momento, embora nossos jogadores sejam brasileiros, nós também já estamos adaptados a outras realidades. Setenta e cinco por cento da seleção brasileira joga fora. Então vamos ter as mesmas dificuldades. E é assim. A Copa tem de ser disputada dessa forma e todos têm de se adaptar a uma situação para ser o melhor. Então eu acho que a Fifa está buscando algumas adaptações, tanto é que já mudou, se eu não me engano, sete horários de jogos. Já se fala em parada técnica.
 
OP - Você já tem 25 na sua lista. Como é, para um técnico, passar por esse processo de escolher, testar, fazer a última seleção? O quanto você gasta da sua tranquilidade nesse processo?
Felipão - Eu não gasto. Eu apenas penso no que é melhor pra seleção. E vamos fazendo as análises dos jogos, das convocações, dos jogos que esses atletas estão participando. E uma imagem geral de como jogamos: ‘Será melhor esse ou aquele? Por que?’. É isso que toma boa parte do tempo não só meu, mas de toda a comissão técnica. Como eles (jogadores) estão fisicamente. E a gente vai fazendo uma análise. À medida que vai se aproximando (a Copa), a gente vai encurtando nomes, mas sempre tem um número maior do que o que vai ser preenchido.

OP - Além de critérios técnicos, um treinador precisa levar em conta outros fatores para montar um grupo. Quais são?
Felipão - Pra montar um grupo tu não pode olhar apenas o aspecto técnico. Tem que ver que tem que ter aceitação, uma situação de grupo que possa ser preenchida com qualidade no dia a dia, porque não serão somente um, dois juntos, mas um mínimo de 45 dias. A gente precisa analisar como é o comportamento pessoal, dentro e fora de campo.
 
OP - Você já tem uma seleção muito encaixada, mas, é óbvio, a seis meses da Copa (a entrevista foi feita em dezembro), lesão sempre pode detonar planos.
Felipão - Sempre (preocupa). Esse é meu medo maior.

OP - Pergunto isso não só pela atual situação do Fred, mas também por causa de jogadores, especialmente os que atuam na Europa, que, pela carga, tendem mais a sofrer lesões na reta final das suas competições.
Felipão - Eu tenho 45 jogadores mapeados, seguidos toda semana e que eu venho trabalhando. Começamos com 36, passamos pra 40, depois pra 45. Agora já temos 48. E se houver algum problema com A ou com B, a gente tem a possibilidade de substituir.
 
OP - Mas isso preocupa.
Felipão - Preocupa porque eu gostaria de ter todos à disposição. E depois eu escolher, certo ou errado. Às vezes você, por uma ou duas lesões, tem que levar alguém pra improvisar, ou alguém que ainda não foi bem testado, mas isso faz parte não só pra mim como para os outros, né?

OP - Agora falando um pouco da passagem da seleção brasileira por Fortaleza na Copa das Confederações. Quando a seleção foi treinar no Presidente Vargas, o (zagueiro) Dante saiu e cumprimentou uma senhora na torcida, conversou, pediu bênção. Essa cena se transformou num sinal do perfil de uma seleção que, por mais que a maioria dos jogadores atue na Europa, tenta uma aproximação, uma relação de bem querer com a torcida.
Felipão - Muitas vezes, o jornalista e o povo acreditam que esses jogadores só dão valor às coisas mais estratosféricas possíveis. ‘Eles se vestem de forma diferente, eles têm atitudes...’ Não, eles são simples, fáceis de trabalhar e são muito humildes. Ninguém pediu pro Dante ir ali. Foi uma coisa espontânea. (Hoje) ele pode estar numa situação muito boa, mas ele já viveu situações diferentes. Então, na maioria, todos os jogadores sabem se comportar e têm esse tipo de atitude. Algumas vezes não tem como atender. E aí passa a imagem de que ele é esnobe. E não é nada disso. Além dessa situação, teve a do hino nacional. Em que, ninguém, nem os jogadores sabiam como a torcida iria se comportar. E a torcida se comportou de uma forma tão maravilhosa que os jogadores ficaram perplexos e também entraram no clima como nunca tinha sido.
 
OP - Mas você chega a falar aos jogadores ‘vamos nos aproximar mais das pessoas’. Que tipo de orientação você passa pra eles?
Felipão - Sempre falamos. Eu tenho já 65 anos. Parreira tem 70. Murtosa tem 62. Já vivemos tantas coisas que podemos passar. Depois é deixá-los à vontade para decidir. A gente quer ter um grupo maior. E um grupo maior não são só os 23. Não é só a comissão técnica. É a torcida. A gente fala e busca alternativa. Mesmo nós achamos algumas rotas a seguir, que passamos aos jogadores. Eles são muito bem orientados. Mas não é uma imposição. Dá-se o conselho, como se faz na família da gente. Mas se ele não quer, é ele quem vai errar e pagar as consequências.

OP - E, ainda na Copa das Confederações, aquele episódio da multidão pra ver o treino no PV. Você quebrou o protocolo para permitir que as pessoas entrassem. Como foi aquilo para você?
Felipão - O problema é o seguinte: a imagem que passam é que a seleção vai treinar e fecham os portões. É uma série de protocolos impostos pela organização que nós não temos como quebrar. Quando quebramos fomos advertidos. Numa próxima situação, seríamos punidos. Naquele dia a gente fez o que fez até porque também a gente estava em Fortaleza, nosso chefe de segurança, coronel (reformado do Exército) Castelo Branco, é da cidade. A gente tinha confiança, o secretário da Copa, Ferruccio (Feitosa), e os amigos da imprensa aqui, como é o caso do Sérgio (Ponte, da rádio O POVO/CBN), de quem sou amigo há 30 anos. A gente tinha uma identidade também. Agora, nós já colocamos à Fifa, nos fóruns que tivemos na Bahia, (determinava) algumas coisas que sobre esse tipo de coisa. Se nós estamos jogando na nossa casa, como é que nós não podemos ter a oportunidade? A Fifa tem as normas e nós vamos ter que seguir. Mas aquilo foi mais uma situação de mostrar pra Fifa que jogos no Brasil, a população, muitas vezes, tem que ser agraciada com um entrar no estádio, observar um treino. Foi agora analisado, vamos ver a resolução.
 
OP - Ao mesmo tempo que a torcida se empolgava com a Copa das Confederações, o Brasil vivia um momento muito turbulento, com as manifestações, em que o gasto de Copa era um dos focos. Como você encarou aquele momento?
Felipão - Nós fazemos parte de uma seleção brasileira. Quando estamos na seleção brasileira, nosso foco é seleção brasileira. Nós não podemos estar vivendo outras situações. Fora do nosso ambiente de seleção brasileira, aí sim, somos brasileiros, vivemos cada um com suas ideias, cada um expressa o que pensa através de suas redes sociais ou nos contatos diários com seus familiares e seus amigos e é permitido, é normal. Mas quando estamos na seleção, não dá pra mudar, não dá pra participar de outras situações. Nós temos que nos restringir àquilo que vamos fazer. E isso não é ser alienado. Dentro da seleção, nunca se proibiu nada, nunca os atletas deixaram de se manifestar. Claro que a gente sempre tem que mostrar que o foco principal é aquilo que a gente tá fazendo. E foi isso o que aconteceu.
OP - A seleção tem um papel institucional. Ela responde à Confederação Brasileira de Futebol (CBF). E representa um país. Isso acaba tendo um papel político. Como você lida com o uso político que possa ser feito da seleção?
Felipão - O uso político da seleção para nós, técnicos e jogadores, nós não nos preocupamos. Porque se nós fôssemos nos preocupar, entraríamos em outra seara em que existem divergências de personalidade de todos nós, jogadores, treinadores, membros da comissão técnica. Cada um tem uma personalidade e uma forma de ver, politicamente, uma coisa. Então nós, dentro da seleção, temos a direção de não discutir, de não participar.

OP - Como você vê o contexto das eleições da CBF em 2014?
Felipão - O ambiente que nós temos de trabalho é excelente. O que eu vejo hoje é uma preocupação com o futuro, com algumas reivindicações, com algumas mudanças, mas com seu devido tempo. Hoje vejo a CBF bem dirigida, organizada de uma forma que dá ao técnico da seleção principal e não só a mim, mas aos outros técnicos de categoria de base, condições para trabalhar. E vai evoluir.

OP - Agora, tomar um posicionamento pró-Marin, você toma?
Felipão - É meu presidente, sou um adepto do trabalho dele. Agora, eu não preciso tomar uma atitude porque eu trabalho pra uma entidade. No dia em que essa entidade não estiver contente comigo, eu sou um funcionário. Se eu não estiver contente com a entidade, eu, como funcionário, peço para sair. Temos que fazer nosso trabalho e bem.
 
OP - O Bom Senso, os sindicatos, essa coisa de calendário, condições de trabalho e organização, como você vê essa necessidade?
Felipão - Vejo na CBF estudos sendo realizados para que as adequações sejam feitas. Não é apenas chegar e dizer ‘eu quero isso’. Tem o aspecto técnico, tem o aspecto político, o econômico. Isso não é para ser composto na primeira semana, no primeiro mês, no primeiro ano. São etapas.
OP - Mas ajustes de calendário podem fazer bem ao futebol brasileiro...
Felipão - Claro! Só que não é fácil, inclusive tem uma série de situações que têm que ser analisadas economicamente pra chegar a esses ajustes. Pode ser que daqui três, quatro, cinco, seis meses surjam ideias e as situações evoluam de tal forma que por um ano, dois anos, três anos a gente vá fazendo as mudanças.

OP - Você conseguiu fazer a seleção brasileira dar certo em relativo pouco tempo. Aproveitou uma base que havia sido deixada pelo Mano Menezes, fez seus ajustes, mas que, considerando o calendário da seleção, foi num intervalo bem enxuto. Como foi essa virada em cinco meses?
Felipão - Nem tão pouco tempo assim. Veja bem que, antigamente, nos primeiros quatro meses, onde nós jogamos cinco amistosos, a gente não tinha uma base pronta. A gente foi mudando e tentando achar um sistema. Só depois do quinto jogo é que a gente achou um sistema, trouxe os jogadores certos e a seleção começou a deslanchar.
 
OP - Mas não é um clube, que você possa treinar todo dia.
Felipão - Mas aí foram as observações dos amistosos, dos jogadores, do que é que a gente imagina. E aí põe em prática nos amistosos e depois começaram a andar normalmente e hoje a gente já tem.

OP - Mas é justamente isso: pra uma seleção que se encontra muito pouco, foi uma solução rápida. Qual foi a revolução que você fez?
Felipão - A revolução feita na seleção é: jogar o mais simples possível. Quando não se tem uma situação concreta, evoluída, definida, volta pro simples. E foi isso o que a gente fez.
 
OP - O Neymar vinha na linha de frente da seleção e vinha sendo muito atacado. Chegou num ponto, às vésperas da Copa das Confederações, em que pareceu que você passou a ser o escudo do time.
Felipão - Mas é uma situação que vocês, eu digo, imprensa, já sabem. Quando eu fui contratado e foi contratado o Parreira junto comigo, nós fomos contratados porque nós tínhamos experiência e podíamos blindar um pouco esses jovens jogadores de situações, principalmente, de imprensa. E foi o que foi feito. Nós apenas assumimos a nossa parte pra dar aos jogadores mais jovens a tranquilidade para que eles jogassem e seguissem com seu futebol, que a gente iria dizer se estava certo, se estava errado, se estava bom, se não estava. E eles se sentiram tranquilos, porque muitas das observações ou dificuldades que eles iam passar, nós assumimos. E daí pronto, deixamos os jogadores mais liberados. E depois achamos uma situação de jogo compatível com a qualidade técnica dos jogadores, ai ficou mais fácil.

OP - Que paralelo você traça da seleção de 2002 pra seleção que você quer campeã do mundo em 2014?
Felipão - Em 2002, era uma seleção experiente. Bem experiente. Jogadores mais velhos, mais vividos. Essa seleção é mais jovem, então nós estamos trabalhando de uma forma um pouco diferente no aspecto técnico. Porque são mais jovens eles têm mais velocidade, eles têm mais ansiedade para chegar ao gol, eles correm muito mais. O futebol mudou de 2002 pra cá, bastante. Então, essas são as diferenças que nós estamos notando e estamos trabalhando num sentido de um adaptação ao futebol atual que se joga no mundo.
 
OP - O que aconteceu com você, como técnico, que havia saído do Palmeiras sob críticas pra fazer dar certo com a seleção?
Felipão - Mudou nada. No Palmeiras eu saí campeão da Copa do Brasil. Eu saí do Palmeiras com 14 faltando pra acabar o campeonato, 42 pontos a disputar. Algumas pessoas não contam 42 pontos...

OP - Você já pensa na sua vida pós-Copa?
Felipão - Não, primeiro eu vou resolver a Copa. É preocupação demais pra pensar agora. Tem que pensar é na Copa, ganhar a Copa.
 
OP - Como você imagina que as pessoas vão lembrar desta seleção brasileira e de você, Felipão, passada a Copa do Mundo de 2014? Que tipo de memória você quer deixar?
Felipão - Eu quero deixar a memória de que nós vamos fazer um bom trabalho, de que vamos nos dedicar, que nós vamos ter um índice de técnica muito bom, eles vão ficar realmente felizes com o que vão observar em relação aos nossos jogos e que, tomara, quero eu e todo mundo vai participar, desse sonho que a gente termine esta Copa como campeões. Agora, deixa eu te explicar uma coisa: é uma imagem que eu vou trabalhar para que o povo entenda. Todo mundo pensa que 1950 foi um desastre. Não foi. Porque o Brasil nunca tinha chegado a uma final. E aqueles jogadores chegaram à final. Perder uma final é porque o adversário foi melhor e, bom, não vamos, tirar os méritos do nosso adversário. Mas aqueles jogadores foram tão bons que foram à final. Nós temos que ser tão bons quanto aqueles pra chegar à final. E aí depois ser melhor na final para não perdermos. O Brasil, em 1958, ganhou, 1962, 1970, 1994, 2002... Mas os primeiros, que deram os primeiros passos, foram eles. Isso é uma das coisas que eu quero valorizar, prestar essa homenagem a eles. E se nós tivermos qualidade e condições de chegar à final, ótimo: nós fomos tão bem quanto aqueles jogadores. 
 
 
 
 
FONTE:O POVO

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